Quem manda aqui sou eu!
"Quem manda aqui sou eu."
Não é incomum escutar (ou ao menos sentir no ar) essa frase na área da saúde. Existe uma crença cultural tácita que sempre posicionou os médicos como autoridades supremas no cuidado clínico, determinando decisões que os outros profissionais da saúde frequentemente acatam sem questionamento direto. Entretanto, recentemente, outras especialidades passaram a se valer dessa “prerrogativa”.
É claro que o direito e a responsabilidade de realizar uma cirurgia recaem exclusivamente sobre o cirurgião, da mesma forma que uma dieta deve ser elaborada por um bom nutricionista. Contudo, o diploma na parede e o registro no conselho não garantem, necessariamente, a competência da conduta profissional. Diploma e registro são apenas o mínimo esperado de alguém que deseje exercer uma profissão na área da saúde — mas não atestam, por si só, a qualidade técnica das decisões tomadas.
Há pedreiro bom e pedreiro ruim, médico bom e médico ruim, fisioterapeuta bom e fisioterapeuta ruim... Então, nesse cenário, que critérios deveríamos utilizar para determinar autoridade? Atualmente, a quantidade de seguidores no Instagram parece ser um critério bastante utilizado. Mas será esse o melhor parâmetro?
Outro dificultador é o fato de não ser simples delimitar com precisão até onde vai a competência de cada profissão. É tentador imaginar que cada profissional tenha uma “área restrita”, mas, na prática, existem zonas de interseção. Quem realiza a cirurgia é o cirurgião, sim. Mas quem determina a necessidade da cirurgia é o quadro clínico do paciente — e não a vontade do médico. Se esse quadro tornar o paciente elegível para a intervenção, a cirurgia deve ser feita. Caso contrário, não.
Percebe-se, então, que a necessidade cirúrgica não é uma opinião médica, da mesma forma que os recursos utilizados na fisioterapia e o número de atendimentos não deveriam depender apenas da opinião do fisioterapeuta. Tanto a cirurgia quanto a reabilitação são prescrições que devem ser recomendadas com base no que uma comunidade científica especializada construiu ao longo do tempo.
Essa autoridade não pertence a uma categoria profissional, mas sim ao corpo de conhecimento que transcende as fronteiras — relativamente bem-marcadas — que definem as profissões.
Mas então? Se ninguém é o dono do conhecimento, para quem eu devo perguntar?
Para quem você quiser, mas, de preferência, siga o conselho de quem te der a informação de melhor qualidade.
E é buscando essa informação que você encontrará, com muita frequência, algo chamado: o gatilho da autoridade. Frases como "Sei porque essa é a minha profissão." ou "Tenho 30 anos de experiência." costumam funcionar como escudos que escondem insegurança, arrogância intelectual ou até mesmo preguiça.
Como disse sabiamente um amigo diante da clássica frase dos “30 anos de experiência” para justificar uma conduta ultrapassada:
"Ainda bem que o Dr. tem 30 anos de profissão e não 300. Caso contrário, estaria usando aquelas máscaras de corvo, me defumando e prescrevendo sangria com sanguessugas."
Mas há algo ainda mais profundo em jogo. Uma história real ajuda a ilustrar:
Durante a pandemia da COVID-19, um chefe de setor de um hospital sugeriu ao fisioterapeuta responsável pela ventilação mecânica da UTI que deveriam extubar determinado paciente. A resposta do fisioterapeuta, baseada em critérios técnicos e evidências sólidas — ou, melhor dizendo, tão sólidas quanto poderiam ser naquela época — foi clara:
– "Se o paciente atender aos critérios clínicos específicos adotados por esta instituição para extubação, sim; caso contrário, não."
O médico, chefe do setor, exaltou sua longa experiência clínica e pressionou para que a extubação ocorresse mesmo sem que tais critérios estivessem plenamente satisfeitos. O fisioterapeuta, seguro de sua conduta, se opôs. Mas o plantão termina, e nem todos os colegas são igualmente preparados ou resilientes.
Outros profissionais, submetidos à pressão, acabaram cedendo. O paciente foi extubado, evoluiu mal, precisou ser reintubado, foi extubado novamente, entubado uma terceira vez — e faleceu. Talvez tivesse morrido de qualquer forma — isso jamais saberemos com certeza. O que sabemos é que aquele corpo, já próximo de seu limite, foi submetido a períodos de oxigenação reduzida e a uma sequência de procedimentos desnecessários, que sobrecarregariam mesmo um organismo saudável.
O fisioterapeuta em questão tornou-se uma referência profissional. O médico passou a evitá-lo. E o paciente... não voltou para casa.
Situações similares acontecem todos os dias, em diversas áreas da saúde.
Mas como os pacientes podem se proteger dessa autoridade vazia, baseada apenas em tradição ou hierarquia? Supondo, é claro, que estejam conscientes e fora de uma UTI. Não é razoável esperar que pessoas sem formação técnica dominem artigos científicos ou protocolos complexos. Não existe uma resposta simples para esse problema social, mas algumas reflexões podem ajudar:
- Bons profissionais acolhem questionamentos respeitosos. Isso não os intimida; ao contrário, muitos ficam satisfeitos por poder explicar o fundamento técnico de suas decisões. Quando há discordância, aproveitam a oportunidade para crescer — como profissionais e como pessoas.
- Tempo de prática clínica, isoladamente, é um argumento fraco. Costuma indicar mais sobre a idade do indivíduo do que sobre sua real competência. Muitas vezes é usado quando faltam argumentos mais sólidos.
- "Eu sou o doutor aqui. Fiz faculdade para isso." Se o profissional recorre a uma informação óbvia como argumento de autoridade, talvez ele não tenha nada mais relevante a oferecer.
- "Já atendi milhares de pacientes." Esse é um argumento que parece mais razoável por demonstrar aprovação social, mas ainda assim é insuficiente.. Afinal, ele pode indicar competência em marketing — e não, necessariamente, em clínica.
- Também tente evitar os “mestres dos magos”. Embora esse texto trate de profissionais da saúde, é comum encontrarmos pessoas que se julgam mais capacitadas do que qualquer especialista apenas por terem acesso à internet e à inteligência artificial. Esses recursos são ferramentas poderosas, que podem ser utilizadas tanto por gênios quanto por estúpidos — e, infelizmente, o número de gênios é consideravelmente menor. É prudente tomar cuidado ao passar perto de um macaco empunhando uma espada: ele pode se sentir impelido a te mostrar como a ferramenta funciona. Ainda que a experiência, por si só, não ofereça garantias absolutas, ela é sempre preferível à completa ausência de experiência.
No fim das contas, o procedimento técnico é, sim, executado pelo profissional da respectiva área.
Mas a decisão clínica deve ser sempre interdisciplinar, levando em consideração a condição do paciente, sua autonomia e a melhor evidência científica disponível.
O resto é vaidade — e, às vezes, tragédia.