É comum que, ao mencionar o uso da metodologia científica no tratamento de pacientes, eu escute uma crítica recorrente:
“A ciência engessa demais as coisas. Cada paciente é único, e eu não consigo enquadrá-lo no processo científico.”
A afirmação soa generosa. Defende a singularidade do indivíduo, a liberdade do terapeuta e, aparentemente, rejeita a frieza do método. Mas essa frase, dita com frequência e convicção, repousa sobre uma falácia elegante: a ideia de que aplicar ciência é o mesmo que aplicar fórmulas. Como se tratar um paciente com base em evidências fosse reduzi-lo a uma estatística, ou repetir procedimentos como um técnico sem alma.
Essa visão é não apenas imprecisa — é perigosa.
Porque o método científico, quando bem compreendido, não é uma grade. É um instrumento de leitura, não de encaixe. Ele não visa enquadrar o paciente num molde artificial, mas ampliar a capacidade do terapeuta de reconhecer padrões, testar hipóteses, adaptar condutas e, sobretudo, duvidar de si mesmo.
O método não encarcera a intuição; orienta, afina, expande.
Ele não a freia — a potencializa.
Eis a ironia:
É justamente o terapeuta que rejeita o método em nome da liberdade que, com frequência, mais se repete. Aquele que diz tratar “cada paciente de forma única” muitas vezes aplica as mesmas manobras, os mesmos palpites, os mesmos protocolos empíricos — não por convicção refinada, mas por falta de opções gerada pela própria ignorância técnica.
Para o martelo que encontra um parafuso, bater não é escolha: é destino determinado pela falta de repertório.
A ciência não engessa. O que ela engessa — com justiça — é o ego do terapeuta. Porque submeter-se a um processo baseado em evidências é reconhecer que nossa percepção é falível, que nossa memória é seletiva, e que precisamos de mais do que histórias comoventes para respaldar resultados.
Tratar com ciência não é ignorar a individualidade; é reconhecer que respeitá-la exige considerá-la a partir de fundamentos sólidos.
Não há respeito verdadeiro no achismo. Não há sensibilidade genuína em aplicar o que “funciona comigo”. Há apenas o eco de um gesto repetido, legitimado por narrativas internas.
A ciência é a luz que emana dos faróis acesos por muitas mãos. A prática isolada é uma lanterna que brilha só até onde alcança meu braço.
O conhecimento científico é uma construção coletiva, testada, refinada, debatida. Ele amplia o olhar para além da experiência pessoal. Já a prática empírica solitária, por mais honesta que seja, está sempre à mercê dos próprios limites: a memória destaca o que convém, a emoção advoga em causa própria, e o desejo de ter razão encontra sempre o que procura.
É curioso que tantos confundam o método com rigidez, como se a estrutura impedisse a criação. Mas é justamente o contrário. É o domínio da estrutura que permite o improviso de qualidade. Assim como o músico só faz jazz depois de conhecer profundamente a harmonia, o terapeuta só se torna verdadeiramente criativo depois que entende os limites, os riscos e as possibilidades reais do corpo humano e de sua dor.
A liberdade que rejeita a ciência é uma liberdade anêmica, e o improviso que rejeita a evidência científica não é sensibilidade — é desorientação com aparência de técnica.
E o terapeuta que se recusa a submeter-se a um método robusto, por vezes, não é um rebelde — é apenas um órfão de fundamentos.
Daniel Alberton Batista